Transcript O CORTIÇO

O CORTIÇO
Aluísio Azevedo
ALUÍSIO Tancredo Gonçalves de AZEVEDO
(São Luís, 1827 – Buenos Aires, 1913)
• “Ontem, assisti, pela primeira vez, a uma
legítima expansão popular; vi a multidão rir e
chorar de prazer; vi uma raça, até então
amaldiçoada, cantar em plena rua a
Marselhesa da alegria (...); em cada olhar
(havia) um raio de vitória...”
Aluísio Azevedo, 14/05/1888
Principais obras:
• Uma Lágrima de Mulher (1890) – inspiração
romântica.
• O Mulato (1881) – marco inaugural do
Naturalismo no Brasil.
• Casa de pensão (1883) – baseou-se na
“Questão Capistrano”, um caso policial
ocorrido no Rio de Janeiro em 1876/7.
• O Cortiço (1890).
• O Cortiço – 13 de maio de 1890.
• Agrega-se espiritualmente ao processo de
consolidação da nova república.
• Fornece um diagnóstico do quadro social do
país, ressaltando o descarado alpinismo social
dos negociantes portugueses João Romão e
Miranda, cujas trajetórias se destacam na
composição da trama.
Obra de caráter naturalista
• Usou a literatura para denunciar os
preconceitos e os vícios da classe dominante.
• Divulgou os problemas diagnosticados no país,
tais como a interferência do trabalho escravo,
sem que isso, no entanto, significasse a defesa
de uma solução transformadora.
• Influências de Émile Zola.
Émile Zola: o romance experimental
• O romance experimental é uma consequência
da evolução científica do século; ele continua e
completa a fisiologia...; ele subustitui o estudo
do homem abstrato, do homem metafísico,
pelo estudo do homem natural submetido às
leis físico-químicas e determinado pelas
influências do meio.
• Os escritores naturalistas procuram a verdade,
observando fatos e comportamento de época
contemporânea, desdenhando o
sentimentalismo.
• Dirigiam seu interesse, sobretudo, para as
camadas mais baixas da sociedade,
enfatizando a naturalidade de expressão
desses grupos sociais.
Incorporam o pensamento de:
• Auguste Comte (1798-1857) – Positivismo
• Não admitiam nada que tivesse significado
sobrenatural, rejeitando as explicações
fornecidas pela religião. Seguiram essa
orientação, aplicando-a ao enredo, no
tratamento da ação e na construção da
personagem.
• Charles Darwin (1809-92) – Evolucionismo
• Afirma a sobrevivência, na natureza, só de
organismos capazes de dar uma resposta
positiva aos problemas gerados pelo
ambiente, cujos recursos dizem respeito às
exigências de cada espécie (a famosa “luta
pela vida”).
• Hippolyte Taine (1828-93) – Determinismo
• Se empenhou em estender o método positivista à
Literatura e às Artes.
• Identificava, na base de cada obra literária três
elementos constitutivos: raça, ambiente e
momento histórico. A arte seria um organismo
sistemático fundado sobre precisos traços
determinantes, verificáveis concretamente nas
sua leis sócios-ambientais e históricos-culturais.
Os primeiros naturalistas formaram o “grupo de
Médam” (1890), em que defendem as seguintes
propostas literárias:
• Visão de mundo determinista e mecanicista:
o escritor analisa objetiva e minuciosamente o
homem como um caso clinico, um animal,
submetido a forças fatais e impulsionado pela
fisiologia em igualdade de proporção com a
razão e o espírito;
• A escrita como ferramenta de investigação
social: a experimentação literária não diz
respeito aos produtos químicos ou animais,
mas ao próprio homem e à sociedade em que
vive;
• Preocupação reformadora: os aspectos
denunciados na obra literária visam a
melhoria das condições sociais que os
geraram;
• Principal alvo: a destruição do Romantismo.
• Na segunda metade do séc. XIX, os escritores
recusam o sonha e o devaneio, abandonam a
inspiração e a psicologia sentimental para
produzir um romance documento,
escrupulosamente voltado para a realidade.
O CORTIÇO – SÍNTESE DO ENREDO
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A estalagem de São Romão
O sobrado de Miranda
Os moradores do cortiço
O argentário sem escrúpulos
Rita Baiana, a mulata dengosa
Jerônimo, o português que se abrasileirou
O incêndio do cortiço
Léonie e Pombinha
A Avenida São Romão
O “abolicionista” João Romão.
ANÁLISE DA OBRA
• Protagonista: grupos humanos marginalizados
– movimentos coletivos: o próprio cortiço.
• Foco Narrativo: onisciência: privilegiam a
minúcia descritiva, revelando ao leitor as
reações externas e internas das personagens,
abrindo espaço para os retratos literários e
para o detalhamento do cotidiano banal.
• Tempo: localiza a ação do romance entre 1872
e 1880. (Lei do Ventre Livre – 1871 - e
Unificação da Itália).
• Enredo linear.
• Digressões: para fornecer ao leitor indicações
indispensáveis à compreensão do passado das
personagens.
• Espaço/Meio: o cortiço situa-se no bairro de
Botafogo, Rio de Janeiro.
• O sobrado do rico comerciante Miranda situase na vizinhança desse local.
• As mulheres trabalham juntas no tanque, os
homens na pedreira ou nas pequenas fábricas
dos arredores; as festas são as mesmas e as
desgraças também.
• O sol: protagonista extra:
• a luminosidade satura a narrativa na tematização
do trópico, pois as “imposições do sol e do calor”
acabam por tornar o habitante vencido,
anulando-lhe os sonhos de ambição, como se
constata ao observar a progressiva decadência
moral de Jerônimo.
• A sensualidade também se mostra diretamente
implicada na imposição de um sol abrasador, que
desde cedo desenvolve os instintos.
PERSONAGENS: TIPOS / ALEGORIAS
• João Romão: imigrante
português, avaro e
ambicioso, explorador,
comerciante, especulador
imobiliário, agiota.
• Constrói seu império por
meio de mentiras e
explorações, com atitudes
torpes e deploráveis,
tornando-se um
representante do modelo
capitalista que a sociedade
do Rio de Janeiro tanto
prestigiou.
• Bertoleza: inicialmente
supõe haver superado sua
condição de escrava e
negra, amasiando-se com
um branco e trabalhando
com perseverança.
• Maltratada, resigna-se com
a condição de mulher
duplamente submissa, a
quem não é dado o direito
de falar e muito menos de
questionar.
• Ela morre, derrotada pela
lei selvagem e impiedosa
de uma seleção social que
só valoriza os vitoriosos e
bem-sucedidos.
• Miranda: comerciante
português, que
representa a alta
burguesia aristocratizada,
status que se confirma
quando ele recebe a
comenda de Barão.
• Cínico e mau-caráter,
casa-se pelo dote da
esposa Estela (fútil).
Aceita a o adultério da
esposa por conveniência.
• Jerônimo / Piedade: típicos imigrantes
portugueses empenhados em formar um
pecúlio, como resultado natural da capacidade
de trabalho. Tais valores dissipam-se pela
influência mesológica. Jerônimo separare-se
de Piedade, ambos atolam-se no pântano do
vício.
• Rita Baiana / Firmo: alegorias do Brasil. Ela é
a sensualidade – metaforizada como perigosa
serpente – responsável pela degradação de
Jerônimo. Ele, capoeira valente, brigador,
violeiro e improdutivo
• Pombinha / Léonie: o nome da personagem
(Pombinha) evoca, de início, pureza de
sentimento, alma boa, ela a é a enfermeira,
escrevente/leitora de cartas. No entanto, ao
ser seduzida por Léonie (prostituta de elite,
transita a vontade no mundo dos poderosos e
também no universo carente do cortiço), entra
em contato com que há de mais espúrio.
Menstrua-se, casa-se. Abandona o marido.
Torna-se prostituta , uma espécie de antidama da Camélias. Responsabiliza-se pela
educação de Senhorinha. Proporciona à
menina o mesmo que recebera de Léonie.
• Bruno/Leocádia: Ele ferreiro; ela, lavadeira –
representam o estereótipo dos moradores do
cortiço.
• Leandra, a “Machona”: era o protótipo da
portuguesa feroz, berradora, sempre disposta
à briga.
• Paula, a “Bruxa”: Cabocla velha,
mandigueira,sabia receitas caseiras com que
preparava remédios e chás. Mística, sabia
preparar feitiços para os que solicitavam seus
préstimos.
• Libório: personagem emblemática de certas
deformações provocadas pelo capitalismo.
Junta dinheiro em garrafas e submete-se a
viver de esmola.
• Botelho: Ladino e espertalhão – simboliza os
parasitas que sugam todos que estão
próximos para obter vantagens materiais.
• Albino: Era lavadeiro: “sujeito afeminado,
fraco, cor de espargo cozido e com um
cabelinho castanho, deslavado e pobre, que
lhe caia, numa só linha, até o pescocinho mole
e fino”.
TRAÇOS TEMÁTICOS:
• Determinismo:
• Os pares João Romão/Bertoleza, Miranda
/Estela, Jerônimo/Piedade, são os que,
principalmente, vêm focalizados sob o crivo
do determinismo. Os homens simbolizam o
estágio por que passa o imigrante português.
As mulheres apenas sofrem as consequencias
dessa integração, bem ou mal sucedida.
• Antropomorfismo:
• “Eram cinco horas da manhã e o cortiço
acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua
infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de
uma assentada sete horas de chumbo. Como
que se sentiam ainda na indolência de neblina
as derradeiras notas da ultima guitarra da
noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e
tenra da aurora, que nem um suspiro de
saudade perdido em terra alheia.” (cap. III)
• Zoomorfismo: “Daí a pouco, em volta das bicas era
um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa
de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a
cara, incomodamente, debaixo do fio de água que
escorria da altura de uns cinco palmos. O chão
inundava-se. As mulheres precisavam já prender as
saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a
tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas
despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do
casco; os homens, esses não se preocupavam em não
molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem
debaixo da água e esfregavam com força as ventas e
as barbas, fossando e fungando contra as palmas da
mão.”
• Fitomorfismo: “O rumor crescia, condensando-se;
o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não
destacavam vozes dispersas, mas um só ruído
compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a
fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões
e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se
não falava, gritava-se. Sentia-se naquela
fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de
plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na
lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de
existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a
terra. ”
• Expressionismo:
• “E naquela terra encharcada e fumegante,
naquela umidade quente e lodosa, começou a
minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo,
uma coisa viva, uma geração, que parecia
brotar espontânea, ali mesmo, daquele
lameiro, e multiplicar-se como larvas no
esterco. ”
• Sexualidade ostensiva: “Jerônimo, ao senti-la inteira
nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne quente daquela
brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as espáduas, num
eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira
da mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelado colo
de cavouqueiro os dois globos túmidos e macios, e nas suas
coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e
borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca,
pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em
brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-lhe
gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os
membros, fibra por fibra, numa agonia extrema,
sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos,
entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno.”
TRAÇOS ESTILÍSTICOS
• Mescla de discursos: culto X popular
• A narrativa é predominantemente na língua
culta e, para as falas das personagens, uma
língua mais despojada, vulgar e coloquial:
“Parece que tem fogo no rabo!”
“Com quem te esfregavas tu, sua vaca?!”
“Estou com o miolo que é água de bacalhau!”
• Cromatismo: “pintura literária do puramente
sensível”
“Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem.
Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte
braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um
grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de
vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro,
onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por
cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte,
escrito a tinta encarnada e sem ortografia:
´Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para
lavadeiras`.”
• Sinestesias: Naquela mulata estava o grande
mistério, a síntese das impressões que ele recebeu
chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela
era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o
aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o
atordoara nas matas brasileiras; (...) para lhe cuspir
dentro do sangue uma centelha daquele amor
setentrional, uma nota daquela música feita de
gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de
cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e
espalhavam-se pelo ar numa fosforescência
afrodisíaca.
• Sonoridade: aliterações, assonâncias e
onomatopéias:
• E as palavras "galego" e "cabra" cruzaram-se de todos os
pontos, como bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo, e
logo em seguida um formidável rolo, um rolo a valer, não mais
de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos homens de
pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus
desapareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando
em descarga; ao passo que numa berraria infernal, num
fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquela onda viva ia
arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas,
baldes, regadores e caixões de planta, tudo rolava entre
aquela centena de pernas confundidas e doidas. Das janelas
do Miranda apitava-se com fúria; da rua, em todo o
quarteirão, novos apitos respondiam;
Pontuação emotiva: exclamações e reticências para ressaltar desejos e sentimentos das
personagens –
- Está bem, filha, não vais tratar do teu serviço?...
- Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi à
Leocádia que me esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco que
fazer e...
- Andaste mal...
- Ora! Não há três dias que fiz outro tanto por ela... E demais,
não foi que tivesse o homem doente, era a calaçaria do
capinzal!
- Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia! Melhor seria
que estivesses à tua tina em vez de ficar ai a murmurar do
próximo... Anda! vai tomar conta das tuas obrigações.
- Mas estou-te a dizer que não há transtorno!...
• Enumerações ternárias: feitas em tom de
gradação, intensificam o dinamismo das cenas
e favorecem os efeitos de aceleração ou
retardamento – realça o perfil das
personagens e o delineamento pictóricos de
certas cenas.
“E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se
todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o
mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando,
com todas as vozes de bichos sensuais, num
desespero de luxúria que penetrava até ao
tutano com línguas finíssimas de cobra.”
•
CONCLUSÃO
• Com esse romance, Aluísio Azevedo realizou uma
obra essencial para o entendimento da sociedade
brasileira no final do séc. XIX,
• Trouxe uma visão mais nítida dos problemas sociais
que atravancavam o país.
• O desfecho aponta como a desonestidade se
transforma em liberdade de ação para João Romão,
possibilitando-lhe o sucesso como especulador.
• Ao assumir um papel de reformador social e moral, o
autor denuncia uma organização econômica
fraudulenta e desigual.