barbárie social
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Transcript barbárie social
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Estrutura Narrativa
Após quinze anos de leais serviços como gerente-executivo
de uma empresa da indústria de papel, Bruno Davert. é
despedido com centenas dos seus colegas devido a
reestruturação produtiva. Após três anos como desempregado,
ele não consegue encontrar um novo emprego. De
repente, Bruno tem a idéia de eliminar seus concorrentes,
antes de matar um gerente-executivo que ocupa a vaga de
emprego cobiçada por ele.
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-Capitalismo global e reestruturação produtiva
- Formas da superpopulação relativa: desemprego em massa e
trabalho precário
-Estranhamento e fetichismos sociais
- Barbárie social
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Edição brasileira de
“The Ax”, publicada
em 2006 pela
Companhia das Letras
e que adotou (como na
edição francesa) o
nome do filme de
Costa-Gavras
O filme “O corte” é baseado no
romance “The Ax”, de Donald E.
Westlake, publicado em 1998.
Westlake, nascido em 1933, no
Brooklin (Nova York,EUA) é um
novelista de renome , tendo
publicado centenas de títulos de
novelas criminais ou de ficçãocientífica.
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Capas de edições norteamericanas do livro com o
sugestivo título “The Ax”
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Em inglês, “ax” significa “machado”,
um instrumento de corte de arvores e
madeira. Entretanto, na língua inglesa,
o termo “ax” guarda o significado de
um instrumento de barbárie préhistórica, utilizado no passado pelos
homens do Neolítico para repelir seus
inimigos. O título “The Ax” sugere que
a trama de Westlake é sintoma do
sociometabolismo da barbárie que marca
o capitalismo global – barbárie social
cujas atrocidades são incomparáveis
com as atrocidades da barbárie histórica.
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George Bush pai e Bill
Clinton no enterro de
Boris Yelstin em 2007
Donald E. Westlake, no romance “The Ax”, consegue
ilustrar, por meio de sua narrativa quase surreal, as loucuras
da década da globalização. A década de 1990 nos EUA, sob o
governo de George W. Bush, começa com uma brutal
recessão (por exemplo, é o cenário do filme “O sucesso a
qualquer preço”, de James Foley). A expansão capitalista em
virtude da derrocada do Leste Europeu e da União Soviética
significam aumento da concorrência desenfreada e o
acirramento do processo de reestruturação produtiva. Ocorre a
I Guerra do Golfo. Sob o impacto da recessão do começo da
década, Bush pai é derrotado pelo democrata Bill Clinton,
após mais de uma década de governos republicanos. Sob
Clinton, os EUA participam da guerra da Bósnia e da
Yugoslávia. Emerge a Internet, a nova economia e a
exuberância irracional das bolsas de valores. A partir de 1997,
deflagra-se a crise do mercados financeiros. Sob a
globalização, prolifera os empregos precários. 1990 é a década
da precarização do trabalho (para ilustrar, os anos 1990
terminam com a narrativa do filme “O Corte”).
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Financeirização da Riqueza Capitalista
Revoluções Tecnológicas
Políticas Neoliberais
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Na década de 1990, as corporações industriais
promoveram cortes significativos na sua força
de trabalho, buscando adotar o modelo
toyotista da lean production. Muitas delas se
relocalizaram para reduzir custos salariais.
Aumenta o desemprego em massa, atingindo
com destaque “proletários de ‘classe média’”.
Downsizing (em português: achatamento) é uma
técnica aplicada das abordagens contemporâneas da
Administração voltada a eliminar a “burocracia
corporativa” desnecessária (principalmente,
empregados e gerentes de médio escalão).Trata-se de
um projeto de racionalização da empresa capitalista
cuja meta global é construir uma “empresa enxuta”,
mais eficiente, segundo a lógica do mercado, capaz de
se tornar competitiva no cenário mundial. A curto
prazo envolve demissões, achatamento da estrutura
organizacional, reestruturação, redução de custos, e
racionalização.
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O gerente da Arcadia, Raymond Machefer,
conversa com Bruno. É um homem que possui
“lucidez” da miséria capitalista, mas numa ótica
particularista (só os diretores das outras empresas
são idiotas). Enfim, ele é incapaz de, por si só, ir
contra a lógica do capital. Ele observa a lógica
irracional do capital que visa apenas a redução de
custos salariais (na Romenia, diz ele, “se trabalha
por três vezes menos”),; por isso, o capital
deslocaliza empresas, predando o mercado de
trabalho e o mercado consumidor de seu País.
Observa: “Quando arruinarem a economia, para
quem vão vender?”.
A deslocalização industrial é uma das estratégias
capitalistas de redução de custos salariais,
visando competir no mercado mundial. Com a
União Européia e a inclusão do Leste Europeu
como zona de baixos salários, muitas empresas se
deslocaram para a periferia européia buscando
reduzir custos salariais. Na verdade, o movimento
do capital visa aumentar a produção de maisvalia e não a satisfazer o mercado consumidor.
Obter o surplus é seu objetivo precípuo acima dos
interesses da Nação e dos cidadãos de qualquer
país. Seu horizonte é o mercado mundial onde
ocorre a concorrência capitalista.
Ao ser inquirido por Bruno, o que faria se fosse
demitido, Machefer responde: “Entraria na sala dos
diretores e acabaria com eles”. Bruno, racional e
pragmático, observa: “Isso não traria seu emprego de
volta.” E Machefer responde: “Eu me sentiria bem”.
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Nesta cena é candente a ironia do mundo do
capital. Bruno recebe um pequeno gravador
digital de presente, pelos 15 anos de leais
serviços prestados à empresa (“que também é
sua”, diz o gerente). Logo a seguir, Bruno seria
demitido, junto com mais 600 pessoas. Redução
antes da relocalização da empresa para a Romênia.
De um lado, a manifestação coletiva de cariz
irracional (“Morte aos que nos mataram”, diz o
slogan dos manifestantes). De outro, a saída
individual, instigada pelo gerente, que incorpora
a razão da empregabilidade : “Com sua
capacidade, logo vai conseguir trabalho”. Dois
anos depois, Bruno continuaria desempregado e
iria buscar sua própria saída (matar, com método,
os concorrentes)
Sob o capitalismo global se acirram as contradições (e
ironias ) da lógica perversa do capital. A principal
contradição do capitalismo global é a contradição
entre desenvolvimento das forças produtivas e relações
sociais de produção capitalista, isto é, por um lado,
devido o acirrado progresso técnico (inclusive com o
maior envolvimento da subjetividade do trabalho na
produção de mercadorias), produz-se riqueza em
escala ampliada, e, por outro lado, ao mesmo tempo,
promove –se a precarização do trabalho vivo e a
degradação do estatuto salarial. Enfim, sob o
capitalismo, riqueza é pobreza.
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O gerente diz que o gravador digital é para Bruno
“registrar a qualquer momento suas idéias criativas
que tanto ajudaram nossa produtividade”. Eis mais
uma ironia do capital: o operário e empregado que
participa da produção do capital, produz sua própria
redundância. Produtividade do capital significa
criação de uma população sobrante, supérflua às
necessidades de expansão do capital.
Outra ironia (da
narrativa do filme): o
gravador digital sinojaponês que Bruno recebe
de presente da empresa
é o mesmo que ele
utiliza para se confessar
- confissão que teve
apenas a função
catártica de fazê-lo dar
continuidade à trama
macabra
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Sob o espírito do toyotismo, ideologia
orgânica da produção de mercadorias,
busca-se incentivar nas empresas, a
participação de empregados e operários no
incremento da produtividade por meio de
idéias criativas que otimizem o processo
de trabalho. É uma forma sutil de
produção da redundância do trabalho vivo
e da força de trabalho com o autoconsentimento laboral. O capital expropria
o saber-fazer de operários e empregados e
os utiliza para incrementar a alienação
entre o trabalhador e o produto de sua
atividade. Sob o capitalismo, o aumento da
produtividade tende a significar expulsão
de trabalho vivo da produção
(downsizing) e superfluidificação da força
de trabalho.
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A superpopulação relativa é a população de força de trabalho excedente constituída pelo
modo de produção capitalista e que pode assumir um caráter funcional, afuncional e
disfuncional. A população liquida, é o contingente de proletários que fluí de acordo com os
ciclos industriais (por exemplo, no período de crescimento, tendem a serem absorvidos e
com a recessão da economia, demitidos). A população estagnada é o contingente de
proletários que não consegue fluir e para sobreviver, insere-se em empregos precários de
baixos salários. A população latente alimenta a oferta de força de trabalho para a produção
do capital. O lumpen-proletariado é a população excluída da produção do capital,
constituída pelos pobres inválidos e incapaz de atividade produtiva.
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Na oficina mecânica onde conserta o
carro, Bruno conversa com um velho
empregado que lhe relata que a
esposa, técnica de raio-X, onze anos
no emprego, foi dispensada do
hospital: vítima da redução,
reestruturação, custos. Diz ele:
“Resultado: nós nos danamos”. O
velho operário ressalta: “Temos que
nos unir. Posso ser o próximo”. O
mundo social do filme “O corte” é um
mundo social permeado de
experiências de demissão em vários
setores sociais. É o mundo da
desconstrução do trabalho salarial.
Sob o capitalismo global, o impulso inédito à acumulação
de capital pelo incremento da produtividade de trabalho,
significou a disseminação do processo de reestruturação
produtiva. O complexo de reestruturação produtiva atinge
os mais diversos setores da economia capitalista –
indústrias, serviços e administração pública. Possui a
lógica da redução de custos e racionalização capitalista do
trabalho. O impacto na estrutura de emprego é perverso –
significa a eliminação de milhões de postos de trabalho
nas empresas. Deste modo, a sociedade do capital
explicita-se como sociedade do desemprego. Trabalho abstrato
que nega trabalho concreto. O que era fluido torna-se
estagnado e o que era estagnado tende a cair na “exclusão
social” (lumpenproletariado).
O velho operário da oficina mecânica diz que se perder o emprego, “vou lá para
cima e estouro meus miolos na frente do meu chefe”. De imediato, Bruno retruca:
“E por que não acabar com os outros dois?” – “Sem que ninguém saiba”. Primeiro,
é interessante contrastar a saída do velho operário com a do gerente Raymond
Machefer, que diz que, caso seja demitido, mata os diretores da empresa. Segundo,
Bruno ao sugerir como saída matar os concorrentes, “sem que ninguém saiba”,
demonstra viver num mundo do particularismo quase absoluto, onde pode-se
ocultar atos insanos da punição dos homens (ou do castigo de Deus).
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Ao conversar com o delegado de
polícia, Bruno observa que o
“crime é a única indústria em
crescimento”. O capitalismo
preserva a capacidade de
transformar tudo em negócio
lucrativo – inclusive a barbárie
social. Noutra cena, Henri Birch,
garçom desempregado da
indústria de papel, observa: “São
tempos de criminalidade”. Como
diz o mecânico: “Tudo é válido”.
A criminalidade origina-se da
crise moral que a crise da ordem
salarial instiga nos “sujeitos
monetários”.
O aumento da população estagnada e do lumpenproletariado
contribui para o incremento da criminalidade. Na medida
em que se rompe o pacto de coesão social instituído pela
“sociedade salarial” do pós-guerra, sociedade do “pleno
emprego” sob regulação fordista-keynesiana, que
acalentava perspectivas de mobilidade social na ordem do
fetichismo da mercadoria, dissemina-se a “anomia social
“. O Estado rompeu seu compromisso com os indivíduos
que se voltam contra o Estado. Homo homini lupus (o
homem é o lobo do homem). A crise do Estado-Nação como
entidade moral significa a volta do “estado de natureza”.
Instaura-se a barbárie social. Enfim, tudo é válido. Além da
criminalidade eventual, prolifera, por conta da crise do
Estado-providencia , a indústria da criminalidade, o crime
organizado.
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A crise social da sociedade do desemprego é a
crise do Estado como instituição de controle
social. É claro que o Estado preserva seus
aparatos de vigilância policial, capaz de deter
infratores das leis. Mas ao mesmo tempo, é
incapaz de dar conta do crime organizado e de
averiguar crimes eventuais. Inclusive, nessas
circunstâncias, torna-se impotente para dar
proteção ao cidadão comum.
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O investigador policial que visita Bruno o alerta que
há um serial killer matando, com uma Luger nazista,
empregados desempregados da indústria de papel.
Bruno pede proteção à polícia. O investigador
observa: “Não temos pessoal”. E Bruno retruca:
“Então contratem”. O investigador observa que
“nunca seremos suficientes”. Mais adiante, ele
observa que o cunhado dele também está
desempregado. Mas a impotência diante do mundo
do capital, não lhe tira a crença na infalibilidade da
justiça criminal. Afirma: “Nós sempre os pegamos
[os criminosos]”. Realmente, a atuação policial no
filme “O Corte” é quase uma farsa diante de um
mundo social descontrolado, permeado de
irracionalismo e desrespeito às leis e ao Outro.
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A idéia do crime como meio de vida é um
principio moral que Bruno adota. É o cinismo
desesperado (e irremediável) da lógica da
concorrência levada ao limite. O “proletário de
‘classe média’” desesperado explicita a lógica
particularismo à exaustão. Como tudo licito,
por que não? Basta evitar que alguém saiba.
Todo meio torna-se valido desde que satisfaça
os interesses do homem reduzido ao estado de
particularidade. Nega-se o Outro como
próximo.
A anomia social significa a desfaçatez
moral. A derrocada da moral burguesa é
a derrocada de toda ordem ético-moral. O
que vigora é a moral das coisas e do
particularismo dos interesses individuais.
A adoção da transgressão da lei como
meio de vida é sintoma da crise do Estadonação como instância de coesão moral. É a
“lei da selva” e a “lei do mais forte” que
se dissemina com a cultura neoliberal que
coloca o mercado no centro do universo
social. Ao enfraquecer o poder regulatório
do Estado, “dignifica-se” a barbárie social.
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No alvorecer do capitalismo monopolista,
Dostoievski , no romance “Os Irmãos
Karamazov”, afirmava: “Se Deus não existe e a alma
é mortal, tudo é permitido”. Ora, a ética burguesa
sempre foi um construto impossível na
modernidade do capital, a sociedade da guerra
permanente. Na medida em que a sociedade
burguesa é a sociedade mais social que existiu,
ela é permeada de questões morais. No cotidiano
estamos imersos em decisões morais. O sujeito
humano é convocado a fazer escolhas. Mas a lógica
do capital que reduz o homem como “sujeito
moral “ao estado de particularidade, esvazia o
universo ético-moral da individualidade pessoal,
que se torna mera individualidade de classe
calculistas e egoístas (o homo economicus), onde os
fins particularistas justificam os meios. Deste modo,
nega-se a construção ético-moral da genericidade
humana (o gênero humano para-si) como aspiração
de sujeitos morais para além do estado de
particularidade.
Num dialogo em família, o jovem Máxime comenta
com a família o tema de sua prova de filosofia: “Os
fins justificam os meios?”. Na verdade, o filme “O
Corte” é uma fábula moral. Máxime diz que os fins
nunca justificam os meios (sua irmã, observa com
ironia: “Menos para tirar o filho da cadeia”). Mas com
uma ressalva: “Menos em tempos de guerra.” Ora, a
sociedade burguesa é a sociedade do estado de guerra
permanente. A concorrência, que lhe é intrínseca, faz
com que o homem seja “o lobo do próprio homem”.
Sob o capitalismo global, e com a constituição da
“sociedade do desemprego em massa”, acirra-se
ainda mais a concorrência. Explicita-se, assim, a guerra
de todos contra todos (o que justificaria os atos de Bruno
Davert.). Mas Máxime observa que “a escolha dos
meios é luxo de uns poucos privilegiados.” (o que se
coloca o problema das classes).
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Bruno Davert vasculha o curriculum vitae dos
concorrentes para averiguar se devem ser eliminados
ou não – caso sejam (ou não) potenciais concorrentes
dele (descobre que apenas cinco possuem diploma
de carreira e experiência). O individuo reduzido ao
estado de particularidade torna-se juiz supremo do
Outro. Diz ele: “Eu me senti superior lendo os
segredos de meus concorrentes”. Num certo
momento, Davert observa: “Todos esses currículos
refinados cheios de conformismo”. O particularismo
de Bruno Davert contém um espírito mordaz de
critica do Sistema. Nesse ponto, ele procura se
distinguir dos demais: “Descobri que eles [os
concorrentes] eram muito ignorantes e cheios de
vaidade. Metade dizia se importar com os
acionistas.””
A lei da selva do mercado é a lei da concorrência
desenfreada onde busca-se sempre levar
vantagem. A escassez social de empregos –
escassez artificial criada pelo capital e que possui a
função simbólica de regular a reprodução
estranhada do metabolismo social – leva à
disseminação de estratégias particularistas,
preparando as individualidades de classe para a
predação social. O devassamento da intimidade do
Outro é uma forma de desrespeito à pessoa
humana. Ao lado da corrosão do espaço público, a
falta de respeito com a pessoa humana – vista como
meio e não como fim em si mesmo – é sintoma da
barbárie social.
Nesta cena, explicita-se um traço da personalidade paradoxal de
Bruno Davert - apesar de ser critico mordaz do Sistema e
considerar os acionistas como inimigos (diz ele: “Eles fizeram
milhares serem demitidos de empresas saudáveis para dar mais
aos gananciosos”), Bruno busca se integrar ao Sistema, tornandose serviçal dos interesses do capital.. Na verdade, Bruno Davert é o
homem cínico, que persegue, como individualidade de classe, a
qualquer custo, seus interesses egoístas. Seu “inconformismo” é
tão contingente quanto sua condição de classe.
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Os fetichismos sociais que permeiam a
estrutura do cotidiano da ordem
burguesa são obstáculos ao
desenvolvimento da genericidade
humano-genérica, contribuindo para a
redução do individuo ao estado de
particularidade. O particularismo em
sua múltiplas formas é um modo de
metabolismo social estranhado.
O metabolismo social estranhado da ordem do capital,
para se reproduzir sob as condições históricas da crise
estrutural do capital e de um processo civilizatório
complexo negado, constitui, com maior intensidade,
formas múltiplas de fetichismos sociais.
O fetichismo social constrange as
individualidades de classe por meio de
valores-fetiches inscritos nas pletoras
de imagens que permeiam o
cotidiano da vida burguesa. Mais do
que nunca, as imagens-fetiches
contém modos de vida e visões de
mundo. É através delas que ocorre a
reprodução espúria da ordem do
capital como modo de controle
estranhado do metabolismo social.
É através da disseminação de objetivações sociais
fetichizadas, modo de aparecimento do estranhamento
social em sociedades mercantis complexas, que se
reproduz a ordem social do capital.
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As imagens-fetiches da ordem burguesa tardia são imagens
que contém valores coisificados que se impõem aos sujeitos
negados. Elas permeiam o cotidiano metropolitano,
disseminando-se sob a forma de propaganda e marketing.
Muitas das imagens-fetiches articulam pulsões inconscientes
ligadas a vida libidinal de homens e mulheres, sendo
elementos da dessublimação repressiva, isto é, da
“expropriação do inconsciente pelo controle” ou ainda a
neutralização social do conflito entre princípio de prazer e
princípio de realidade através de uma satisfação administrada,
ou seja, “uma liberalização controlada que realça a
satisfação obtida com aquilo que a sociedade oferece”,
pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao campo
dos negócios e dos divertimentos, a própria repressão é
recalcada”(Herbert Marcuse).
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No filme “O Corte”, o personagem Bruno Davert é “cortado” por imagensfetiches impressas em outdoors e cartazes de propaganda dos mais diversos
tipos, em sua maioria de claro apelo eróticos. A “sociedade do trabalho
abstrato” é a sociedade do engodo e da manipulação da subjetividade do
trabalho vivo. A forma predominante da manipulação social ocorre através
da pletora de imagens-fetiches que seduzem corações e mentes com apelos
comerciais do consumo ou da política.
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Nesta cena, a marca Arcadia, grande
empresa da indústria de papel, objeto de
desejo do sonho salarial de Bruno Davert.
Ao cometer suas atrocidades, Bruno têm em
mente ocupar uma vaga de emprego na
Arcadia. É por ele que executa seus
concorrentes. A marca Arcadia é o mito
mobilizador de seu instinto assassino.
A marca é um tipo de imagem-fetiche que
representa o valor da empresa, valor
estranhado que se valoriza (e desvaloriza) de
acordo com o jogo do mercado. A Marca
compõe o imaginário da natureza social do
capital. Como capital social abstrato, ela é
produzida (e reproduzida) cotidianamente no
imaginário de homens e mulheres. A marca
da sociedade anônima não possui rosto, mas
apenas vigor imagético. É um ícone social e
simbólico, extensão virtual do capital social
abstrato. É importante lembrar que a
mercadoria é, acima de tudo, imagem, que se
traduz hoje, na marca do negócio.
O nome Arcadia – marca da grande empresa ligada a indústria de
papel, significa o lugar mítico onde o homem vive em plena
comunhão com a natureza. Em termos geográficos, a Arcádia é a parte
central, que se prolonga para nordeste, da península do Peloponeso. É
a terra dos pastores, paraíso de felicidade, onde, na mítica idade do
ouro, o homem convivia livremente com os deuses e se nutria dos
bens que a terra lhe prodigalizava. É irônico que no filme “O Corte”,
Arcadia seja a marca de uma empresa ligada a indústria de papel,
uma das indústrias mais contestada pelo movimento ecológico..
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O filho de Bruno Devert, Maxime mostra à
família a reportagem na TV que trata do
assassinato do engenheiro da indústria de
papel e de sua mulher. A filha observa: “Ela
está toda produzida hoje. Como estivesse
apresentando um desfile de moda.” No filme
“O corte”, a filha do casal é uma menina de
observações mordazes. Por exemplo, é ela que,
numa cena de diálogo familiar, após o irmão
dizer que os fins nunca justificam os meios,
retruca: “Menos para tirar o filho da cadeia”
A sociedade burguesa tardia é a sociedade do
espetáculo (Guy Debord). O
sóciometabolismo do capital, espetaculariza
os eventos cotidianos, equalizando-os como
espetáculos ou imagens consumidas por
sujeitos contemplativos. Tornam-se eventosmercadorias – imagéticos e virtuais. Na tela
da TV, reduz-se os eventos transmitidos à
espetáculos sensacionalistas. Eles são
apresentados como eventos esportivos ou
desfiles de moda. A banalização da tragédia
sociais é um modo de reiterar a ordem
sociometabólica do capital.
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Bruno Davert utiliza o pequeno gravador
digital que ganhara de presente da empresa
para confessar suas atrocidades. É uma
confissão virtual. Como Jean-Marc Faure, no
filme “O Adversário”, Bruno decide confessar
e cometer suicídio, abandonando seu plano
macabro. Mas a confissão virtual torna-se mera
via de catarse que o liberta do medo de
prosseguir em seu insano plano criminoso..
A incapacidade de enfrentar o próximo,
expondo-se à presença do Outro como
sujeito moral é um traço de sujeitos
dessefetivados em sua dignidade moral. O
virtual torna-se, deste modo, uma prótese
da sociabilidade negada e em
desefetivação. Ao se confessar, em sua
aguda solidão, o sujeito dessefetivado do
contato direto com o Outro como sujeito
moral, submerge em seu particularismo. É
mais um sintoma dos laços sociais
fraturados pelo estranhamento social.
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Nesta cena do filme “O Corte”, Bruno Davert
prepara seus curriculum vitae com foto para enviar
para as empresas. A esposa observa que ele deve
usar uma foto “mais relaxada” (ele se irrita e diz
que não é bom em se promover). Mais tarde, o filho
iria lhe abordar e dizer que, caso ele esteja indo para
uma entrevista, deveria “sorrir”. Tanto a mulher,
quanto o filho, sabem mais que Bruno dos
requisitos formais exigidos pela sociedade da imagem.
As empresas preferem pessoas relaxadas e que
expressem, se em sua face, satisfação com o mundo
(o sorriso é fundamental, mesmo que você esteja
indo para o matadouro...).
Na sociedade do espetáculo, as imagemfetiches são elementos organizadores
da aparição social. É preciso adequarse aos requisitos da ordem burguesa. O
parecer ser é mais importante do que o
ser (e inclusive o ter). Na busca de
emprego, o ritual das entrevistas exige
do candidato, plena desenvoltura na
sua Imagem. Deve-se incorporar nela
valores caros à ordem disciplinar do
trabalho estranhado . A valorização do
“sorriso” é o sinal imagético do
consentimento à ordem estranhada do
capital. Sorrir desarma o pensamento
negativo, além de significar abertura
para atitudes pró-ativas e propositivas.
Do “sorriso” às idéias criativas que
contribuem para a produtividade – eis
o caminho da “captura” da
subjetividade do trabalho pelo capital.
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Bruno Davert observa na TV uma propaganda da
Arcadia, a empresa dos seus sonhos. O gerente de
produção Raymond Machefer apresenta uma
máquina que produz toneladas de papel a partir
de papel reciclado. (eis uma metáfora do filme “O
Corte” - papéis se reciclam – e os homens? Quem
“reciclaria” os desempregados de longa duração?).
Em sua fala, Machefer diz: “Nossas ações subiram
devido a nossa experiência”. É um auto-engano: a
subida de ações pode representar um movimento
especulativo a partir de sinais de maior
produtividade e lucratividade futura da empresa
(no mundo do capital, maior produtividade significa
mais redundância da força de trabalho e portanto,
mais desemprego)
Sob o capitalismo midiático, a imagem do
empregado é, de certo modo, a imagem da empresa,
imagem midiática que possui um valor no
mercado de capitais. Na medida em que cuida de
sua Imagem, o empregado agrega valor à marca
da empresa. Constrói-se uma imagem como se
produz um produto-mercadoria, artigo de luxo,
delicado e complexo. Ao expor-se nos aparatos
midiáticos, o que vale é o que parece ser. A partir
dele, se constrói efetivamente o metabolismo
social.
Esta cena do filme “O Corte” é fundamental – nela o filho
Máxime sugere, a título de brincadeira, a eliminação do gerente
de produção da Arcadia. Diz ele: “Vou acabar com ele para você
ficar com a vaga”. Mas Bruno sabe que não adianta – ele não seria
o único candidato (‘Máxime, ainda brincando com o controle
remoto diz: “Vou ressuscitá-lo”). E Bruno diz para si (dando o
exemplo do pensamento particularista): “Esse cara pegou sua vaga.
Eu tinha que descobrir quantos caras qualificados com fotos
sensuais estavam à minha frente.”
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Máxime brinca com o controle remoto da TV,
primeiro, “matando” o gerente de produção da
Arcadia, que ocupa uma suposta vaga que poderia
ser de seu pai. E depois, o “ressuscita”, apenas
manipulando o controle remoto da TV. Como um
videogame, “mata-se” e “ressuscita-se”, sem
maiores conseqüências. A geração de Máxime é a
geração da virtualidade. Noutra cena do filme, em
que a família está almoçando ao ar livre,
dialogando, Máxime é repreendido pela mãe por
querer jogar, à mesa, videogame portátil .
A subjetivação pela imagem-fetiche nos educa para
o fingimento e a trapaça (pode-se fingir o que se
deseja como sonho particularista). Trata-se de um
jogo virtual que se torna corriqueiro devido a
subjetivação pela virtualidade que se dissemina na
“sociedade em rede”. Por exemplo, com o
videogame finge-se ser o que está na tela. A tela é a
realidade virtual que nos envolve (ou nos incorpora). Tornamo-nos “sujeitos virtuais” ou
simulacros de sujeitos humanos. A juventude que
nasce sob o mundo social das novas tecnologias de
subjetivação virtual incorpora, com vigor, os novos
referentes da individuação.
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Pela manhã cedo, os policiais chegam
para revistar a casa dos Davert. Bruno
aconselha a filha Betty a fingir: “Finja que
acabou de acordar. Não abra na primeira.
Diga que estamos dormindo.” Mentir e
fingir tornam-se regras de sobrevivência
no mundo sistêmico do capital. Ao agir
desta forma, Bruno “educa”, quase
subliminarmente, a filha (e o filho) nas
regras “morais” da ordem burguesa.
A sociedade do espetáculo e das imagens-fetiches é a
sociedade do fingimento , que aparece como
estratégia particularista de sobrevivência diante das
injunções sistêmicas. É sintoma da corrosão moral
e da intransparência social. Na verdade, a sociedade
do fetichismo é a sociedade do fingimento. O
fetichismo oculta a verdade das coisas. O fetichismo
da mercadoria oculta a verdade da mercadoria: ser
produto do trabalho social. Mas a mercadoria
“finge” ser mero objeto de desejo. O fingimento é a
atitude do sujeito desefetivado, “sujeito pósmoderno”, homens e mulheres de identidades
fluidas e incapaz de auto-referencia moral.
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Um casal consegue “furar” o bloqueio da
manifestação grevista de lixeiros em Paris,
mentindo e trapaceando. Diz o homem: “Minha
esposa está doente. Estou indo para o hospital”. O
policial que controla o tráfego, diz: “Ninguém
pode passar”. Mas o homem insiste, apelando para
a auto-piedade do policial: “Tenha dó. E se fosse
com você?”. Ele consegue passar, sendo seguido
por Bruno, que aproveita-se da situação. Logo
adiante, o homem caçoa dos grevistas: “E eles
acreditaram!”. Bruno faz um sinal obsceno para o
homem. Ao educar os filhos para o mundo social
da trapaça e mentira , Bruno apenas o reitera.
O fingimento é forma de trapacear e afirmar
interesses particularistas, desprezando, deste
modo, o movimento social. É sintoma da
dessocialização e desefetivação dos laços sociais.
É a negação do diálogo e da ação comunicativa
entre sujeitos morais. Ao trapacear por meio do
fingimento, o sujeito desefetivado afirma sua
vontade egoísta no mundo do capital marcado
pela guerra de todos contra todos. A trapaça é a
moral do mercado desregulado, onde se busca
afirmar, não a vontade coletiva, mas a vontade
do individuo reduzido ao estado de particularidade.
O fingimento e a trapaça como sintomas da
barbárie social, tendem a subverter a
reprodução social.
Giovanni Alves - UNESP
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Com a barbárie social, uma forma de
“regressividade” histórica, repõe-se elementos
sociometabólicos de sociedades tribais nas
condições de um processo civilizatório avançado.
Na verdade, a adoção de práticas coletivas de cariz
tribal é expressão do contraste paradoxal,
agudamente contraditório da modernidade
tardia do capital, isto é, uma sociedade onde o
trabalho está objetivamente socializado, mas que
preserva e reproduz relações sociais privatistas. A
“regressividade” é mera aparência desta
contradição essencial. Os rituais coletivos de
cariz particularistas – práticas tribais – que
simulam a ativação coletiva para a guerra social
explicitam a contradição social candente.
Bruno Davert presencia cenas inusitada ao
circular pela cidade: primeiro, uma família liquida
todos os bens para obter dinheiro (“Preciso de
dinheiro – Vendo tudo”). Diz o cartaz: “Je liquid
tout” (as coisas tornam-se “liquidas “tanto quanto
os homens). Na verdade, os proletários
“excluídos” são “sujeitos monetários sem
dinheiro”(Kurz). Depois, a exibição performática
de um grupo de percussão musical ao estilo tribal.
Outra cena é a de um grupo de homens
uniformizados que, num estilo marcial, se
desestressam praticando tiro. Estas cenas explicitam
elementos de uma “regressividade” históricosocial : elementos tribais repostos na sociedade da
precarização do trabalho (a sociedade do stress).
Giovanni Alves - UNESP
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Bruno Defort é um transgressor compulsivo
das etiquetas sociais burguesas. O policial
observa: “Não jogue lixo na rua para se
acalmar”. E diz: “É perigoso também”.
Noutra cena, ao jogar, no rio, a luger que
utilizou nos assassinatos, é pego de
surpreso por um desconhecido que grita:
“Poluidor!”. Ora, como ser “limpo” numa
“sociedade suja” (a sociedade do capital)? –
é outra questão moral suscitada pelo filme
“O Corte”.
A produção de uma população sobrante às
necessidades de acumulação do capital, explicita a
irracionalidade da ordem burguesa. Por um lado,
uma preocupação com limpeza e ordem e por outro,
um mecanismo social que produz a superfluidade
da força de trabalho. Não se contesta que os
downsizing das empresas “poluam” a Natureza
social, destruindo planos de carreira e a ordem
pessoal e familiar do homem. Nem se contesta que
o desemprego de longa duração “suje” o
metabolismo social, degradando as relações sociais
e o trato humano interpessoal.
Giovanni Alves - UNESP
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Ao acordar na madrugada, Bruno Davert está
diante de uma TV ligada. Passa um filme noir
não-identificado, filme policial, de perseguição
sinistra, rostos aterrorizados, quase um
pesadelo. É quase que a metáfora visual de sua
vida oculta como serial killer salarial.
Na tela da TV expõe-se a cena social do
mundo, literal ou metaforicamente. A
recorrência a temas de violência exacerbada
explicita um traço candente da ordem social
dilacerada pelo estranhamento e múltiplos
fetichismos. A violência está na tela virtual da
TV porque antes, está no mundo real da
sociedade burguesa. Aliás, a midiatificação da
violência social é um modo da sociedade autobanalizar seu próprio flagelo, passando a
encará-lo como algo natural com o qual se
deve conviver. A banalização do mal é a antesala dos fascismos do cotidiano. Na medida em
que não se indigna com o “mal social”(e a
indignação é um valor moral), o “mal social”
se reproduz, tornando-se uma “segunda
natureza” que se impõe a todos nós.
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Num certo momento, numa tomada de cena de
cima para baixo, Costa-Gavras coloca Bruno
Davert, no alto da escada, observando a mulher
sair para o trabalho. O homem provedor fica em
casa e a mulher, “rainha do lar” no imaginário
fordista-keynesiano, sai para o trabalho precário.
Ele pensa consigo mesmo: “Tornei-me hostil e
anti-social”. E arremeta: “Marlene tinha dois
empregos”. A condição critica da ordem
burguesa inverte a normalidade social (e moral).
Percebemos que Bruno tornou-se um homem
amargurado, ressentido e pragmático.
O desemprego de longa duração (o trabalho
precário,) exerce, um efeito desgastante nas relações
humano-sociais. A rotina da “exclusão social” na
sociedade do trabalho é a rotina da barbarização à
prazo, principalmente no caso do “homem
provedor”, o chefe de família desempregado, que se
torna, muitas vezes sem o saber, cada vez mais,
auto-centrado, egoísta, imersos no particularismo
que o consome. Na medida em que o emprego digno
na sociedade salarial é um passe de identidade
social, o desempregado está imerso num processo
reverso de auto-identidade e referência pessoal. É
um modo de desmontar a personalidade social, cujo
subproduto é o egoísmo e a concorrência
dilacerante.
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Nesta cena, Bruno Davert observa pela janela,
a mulher pegando carona com o vizinho,
também desempregado. Marlene vai para o
trabalho, um emprego precário part-time. Ele
pensa no passado, quando, ao ser empregado
dos papéis Kamer, tinha dois carros. Hoje,
tem apenas um carro, que utiliza para
procurar emprego. Mas Bruno – com ciúmes
– não deixou de reconhecer uma
“positividade” na desgraça da precarização:
eles conheceram o vizinho, que passou a dar
carona para Marlene.
A precarização do trabalho é um processo de perda
paulatina do padrão de vida do mundo do
trabalho. É uma síndrome social que desgasta a
objetividade (e subjetividade) da força de trabalho
e do trabalho vivo. Precarização é desefetivação ou
perda da percepção de realidade. Ela corrói laços
sociais (e psicológicos) do individuo com o mundo
social. Naquele continuum de tempo, desgastam-se,
por exemplo, hábitos de consumo que são
elementos de auto-identidade de classe.
Precarização do trabalho é precarização da vida,
porque o trabalho (ou emprego digno) na
sociedade salarial é a fonte de rendimentos
capazes de permitir acesso às mercadorias de
consumo, não apenas objetos de necessidade
necessária, mas objetos de distinção e de autoreferencia social. Na medida em que o “proletário
de ‘classe média’” perde acesso às mercadorias de
distinção social, temos a experiência vivida e
percebida da precarização da vida, extensão da
precarização do trabalho como identidade social.
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A cena do bar em que Bruno Davert
dialoga com Etienne Barnett é
interessantíssima. Expõe um personagem
“proletário de ‘classe média’”que vive
também o mesmo drama de Bruno: o
desemprego de longa duração. Barnett
trabalho como garçom. Diz ele: “Trabalhei
16 anos numa empresa, depois fui
demitido.” Na cena, Barnett é amável com
Bruno, oferecendo-lhe vinho, sem
imaginar que Bruno será seu algoz. Como
garçon, Barnett diz pensar muito (“É tudo
que me resta fazer como garçom”).
O desmonte da relação salarial fordista-keynesiana,
um tipo de salariato vinculado ao modo de
desenvolvimento keynesiano/regime de
acumulação fordista que marcou o capitalismo
do pós-guerra, implicou na migração de um
contingente da força de trabalho para relações
salariais de emprego precário, part-time, casual,
descontinuo, desqualificante, trabalho alienado
insatisfatório, aquém das habilidades
profissionais de seus ocupantes. É a proletarização
de contingentes de assalariados médios,
“proletários de ‘classe média’” que se
reencontram com sua condição de proletariedade.
Altera-se a morfologia do trabalho social. A cena
urbano-social é marcada pelos personagens à
deriva, desempregados, alguns ociosos, outros a
procura de emprego e outros em empregos
precários.
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No bar “L ‘Étape”, onde Ettiene Barnett trabalha
como garçom, Bruno se vê refletido no espelho do
bar. Sua imagem está bipartida. É a metáfora do
homem burguês em crise, dividido entre a
condição de individualidade de classe egoísta,
pragmática, que busca preservar sua força de
trabalho como mercadoria; e a condição de
individualidade pessoal que aspira alcançar a
genericidade humana e que cultiva valores
humanistas. Bruno busca “reprimir” seus impulsos
humanistas para se adequar à ordem burguesa
(Ser humanista na ordem anti-humanista seria
pura loucura! – pensaria ele) É o senso de
pragmatismo que leva Bruno a matar seu
concorrente. Pelo emprego, ele é capaz de fazer
tudo (é interessante que Etienne Barnett é da
mesma estirpe de homem burguês, alucinado pela
precarização salarial e com idéias fascistas na
cabeça – Barnett sugere, por exemplo, “eliminar”os
velhinhos para resolver o problema da economia
nacional).
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Logo na entrada do motel
indicado por Etieene Barnett,
“moderno, mas sem nenhum
contato humano”, a imagem
de uma mão segurando um
relógio...
Ao pedir uma dica de hotel próximo, Etienne
Barnett sugere a Bruno um hotel moderno –
“moderno, mas sem nenhum contato
humano”. É um “hotel horrível”, segundo ele.
Bruno que busca incorporar o espírito do
serial killer salarial, observa: “Ótimo. Sem
contato humano”. Ele sabe que ao praticar
atos desumanos deve-se evitar qualquer
vislumbramento de humanidade. É por isso que
ele evita se envolver humanamente com o
garçom Etienne Barnett, sua próxima vítima.
O hotel onde se hospedará Bruno Davert “moderno, mas sem nenhum contato
humano” – é a metáfora da modernidade do
capital em sua condição critica. Talvez, outra
metáfora do inconsciente da ordem burguesa
desumana, constituída por homens psicóticos,
divididos em si e para si, seja o Bates Hotel, no
filme “Psicose” de Alfred Hitchcock.
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Henri Birsch observa que vive-se uma era insana. Em sua
condição critica, a ordem burguesa é ordem de loucuras
sistêmicas, onde homens proletarizados ou homens que
vislumbram a condição de proletariedade e tiornam-se
homens enlouquecidos.
Mas a loucura da ordem
burguesa é objetivamente
discernível: é a ordem da
produção destrutiva, com
destaque para a destruição do
trabalho vivo e da força de
trabalho, explicitada pela
disseminação do desemprego de
longa duração que atinge um
imenso contingente de
trabalhadores qualificados.
Como observa Birsch: “’Nós
nos livramos das pessoas
quando estão no auge da
produção”. Isto é não apenas
produção destrutiva, mas
autodestruição.
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Ettiene Barnett se revela como sendo
alguém da mesma estirpe sóciopsicológica de Bruno Davert. Aliás, eles
são “proletários de ‘classe média’” que
vislumbram a condição de proletariedade.
Quando Barnett propõe a eliminação dos
velhinhos para salvar a economia nacional,
Bruno observa, para Barnett, quase se
traindo, que o desemprego de longa
duração “está deixando você maluco
também”. Mas logo a seguir, como ser
dividido, imerso em contradições
ideológico-pessoais, Barnett faz uma
observação lúcida, mas derrotista: “Mas
não pode enfrentar o avanço do
capitalismo”. Pela primeira vez no filme,
surge a palavra: “capitalismo”. Eis a
questão.
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Ettiene Barnett oscila de opiniões criptofascista a idéias de um socialista
desesperado. É uma personalidade
confusa, dividida entre o pragmatismo e
a aspiração a genericidade humana. A
idéia de ”tornar os seres humanos no
centro de tudo” é a idéia do socialismo.
Mas Bruno Davert, num impulso de
classe, é pessimista. Observa: “Mas é
tarde demais”. Bruno incorpora a ótica
da “pequeno burguesia assalariada” que
vislumbra sua condição de proletariedade e
que, marcada pelo individualismo , não
vê saídas históricas efetivas. Na
verdade, a única saída histórica efetiva é
a saída coletiva na perspectiva política (e
social) da consciência de classe.
Entretanto, ela não se põe, hoje, no
horizonte histórico destes personagens.
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No diálogo com um vendedor de roupas
masculina, engenheiro de papel
desempregado há 5 anos, vítima do
desemprego de longa duração, Bruno
conhece outro aspecto do “desmonte” da
subjetividade pessoal do homem
desempregado: a auto-imputacão do fracasso. O
vendedor é a própria expressão da
desefetivação humana. Perdeu o emprego e
um anos depois, perdeu a mulher. Não
consegue mais ver perspectivas de
empregabilidade e afirmação pessoal. É um
homem à deriva.
A busca cotidiana por emprego dignos,
alimentada pela perspectiva de
empregabilidade, é uma forma contingente
de dar sentido à vida de proletários
desempregados. Na medida em que o
tempo passa, pode ocorrer o desalento que
acompanha o desemprego de longa duração.
Ao abandonar, de vez, a busca por
emprego de acordo com as qualificações
profissionais construídas no decorrer da
carreira social, ocorre a “exclusão”, o
desligamento do empregado ou operário
do circuito liquido da população
produtiva. Ele não consegue fluir mais,
mas fica estagnado nos empregos precários
insatisfatórios. Para alguns, significa a
“morte social”. Na verdade, a “exclusão”
é a nova forma de desligamento/inclusão
precária de assalariados precarizados.
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A ordem burguesa em condição critica é uma
máquina de produção destrutiva (e autodestrutiva). Dilacera a auto-estima e cria um
complexo mecanismo de culpabilização das vítimas de
desemprego. Querem-lhe imputar a imagem de
fracassados. A pessoa humana carrega toda a culpa
do mundo. O sentimento de culpa é um sentimento
atroz (que o diga Joseph K., de “O Processo”, de
Franz Kafka). O vendedor de ternos é uma figura
triste. Ele observa: “Depois de ficar desempregado
por 5 anos, você é um fracasso”. Eis a palavra
maldita na ordem do sucesso: fracasso (Bruno
reitera, concordando: “fracasso”). Mais tarde, o
vendedor iria cometer suicídio, para a felicidade
salarial (e familiar) de Bruno Davert (o
investigador policial irá imputar ao vendedor a
culpa pelos assassinatos em série). É curioso que,
tal como na ordem do capital, uma provável
vítimas de Bruno Davert é que irá receber, post
mortem, a imputação de “culpada”.
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Eles dialogam num pequeno provador de
roupas com espelhos nas laterais, criando um
ambiente de reflexividade literal. Na verdade,
uma imagem reitera a outra e perpetua o jogo
da aparência. A mise-en-scene sugere, a título de
metáfora, a perversa reflexividade da ordem
burguesa, onde quem tem mais, acumula
(sempre) mais. As políticas neoliberais
salientam a mesma lógica da reflexividade
perversa. No mercado de trabalho, ela é
aplicada da mesma forma: empregados e
operários que não estejam no mercado do
trabalho há muito tempo, perdem, aos poucos ,
a chance de serem “incluídos”. E ao não serem
empregados, ficam afastados
irremediavelmente do mercado de trabalho.
Outra situação ocorre com aqueles que não
conseguem emprego porque não tem
experiência profissional; e não tem experiência
profissional, porque não lhe dão a chance de
terem o primeiro emprego.
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Ao seguir sua próxima
vítima, Bruno Davert a
segue até o hipermercado
do lar, bastante sortido,
lugar sofisticado, ambiente
típico para “proletários de
‘classe média’”que cultivam
o ambiente da casa luxuosa
como espaço sagrada (quase
mágico) na estrutura social.
É curioso o detalhe dos
anõezinhos de jardim, ícone
kitsch para decorar casa de
assalariados de “classe
média”.
Anõezinhos de jardim da
casa do gerente
desempregado no filme
“Ou Tudo Ou Nada”, de
Peter Cattaneo, filme
inglês que trata de
desempregados.
Os “proletários de ‘classe média’” são um
contingente específico de proletários afetados
de negação em sua possibilidade de virem a
desenvolver uma consciência de classe do
proletariado e portanto, pertencerem
efetivamente à classe do proletariado . A
consciência de classe é “deslocada” pela
estratificação social (status e prestigio social),
que decorre da posse de habilidades técnicoprofissionais, posse de prerrogativas de
poder e posse de objetos de consumo de
distinção e ostentação. Os “proletários de
‘classe média’” cultivam um determinado
tipo de cultura familiar (a família nuclear) e
possuem determinadas práticas de lazer e
entretenimento, circulando por
determinados ambientes privilegiados da
sociedade burguesa (por exemplo, shopping
centers, verdadeiros templo da modernidade
do consumo de distinção e ostentação.
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Ao perseguir sua próxima vítima, pelas ruas
de um bairro suburbano de classe média,
Bruno Davert, “proletário de ‘classe média’”
marginalizado, se depara com policiais
perseguindo jovens delinqüentes. O mundo
social de “O corte” é o mundo da
marginalidade social ampliada. A condição de
proletariedade se explicita para amplas
camadas sociais – inclusive de “classe média”.
A proletarização de assalariados médios,
“proletários de ‘classe média’” que
reencontram a condição de proletariedade,
constitui a nova marginalidade social que
cresce nas metrópoles e seus subúrbios,
reencontrando-se com a velha
marginalidade social urbana, que atinge
setores historicamente excluídos das
realizações de consumo da sociedade
burguesa tardia (o maior índice de
desemprego na França, por exemplo, é
entre jovens e imigrantes). A cena urbana
do capitalismo “pós-moderno”é
constituído pelo encontro multi-temporal
de velhas e novas “manchas sociais” de
exclusão e precarização social.
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Bruno Davert adormece na confortável
poltrona do escritório na mansão de
Raymond Machefer, sua próxima vítima.
Sonha com o emprego na Arcadia. Como
na inserção publicitária na TV, onde
Machefer fala do processo de produção do
papel, Bruno Davert demonstra
desenvoltura ao explicar o “milagre” da
produtividade na Arcadia. Esta cena
possui a estrutura onírica – a justaposição de
motivos com significados contrapostos,
criando um significante absurdo, isto é, sem
significado efetivo na realidade (o que é a
estrutura da ideologia como falsa
representação do real).
O sonho do “proletário de classe média”
desempregado é voltar à sua terra prometida de
prestigio social e status profissional. Ela é fonte de
rendimentos de consumo de distinção e ostentação
que lhe propicia um vinculo específico de classe,
controverso mas efetivo. Ele vive o desemprego como
flagelo individual, não questionando suas conexões
sociais com a ordem da exploração e espoliação. Está
imbuído do espírito de concorrência com o outro , que
implica o exercício voraz do consentimento à valores
sistêmicos. Apesar dos pequenos surtos de
consciencia critico-particularista, cultiva os valores da
ordem vigente.
Ao afirmar na cena do sonho que “o que
importa é que o homem está no centro
disso”, Bruno, homem dividido, mistura,
no subconsciente, uma afirmação de
Ettiene Barnett, uma de suas vítimas
(uma afirmação que ele concordou
intimamente), com seu desejo íntimo de
ser o gestor do capital. Ora, é um
significante absurdo imaginar que, sob a
ordem do capital, o homem possa ser o
centro.
Giovanni Alves - UNESP
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O sonho ideológico de Bruno Davert contém outras
“pérolas” do subconsciente delirante de um
“proletário de ‘classe média’” que busca compatibilizar,
no desejo, os interesses da ordem sistêmicas do capital
com as aspirações de uma sociedade emancipada do
trabalho. Assim ele diz: “Aqui a automação vem
depois do homem”. E ainda: “Meu objetivo: melhoria
das condições de trabalho com aumento de
produtividade.” Ora, pode-se até melhorar as
condições de trabalho, mas a fábrica torna-se uma
fábrica enxuta. Resultado: incrementa-se a
superpopulação relativa e a precarização do trabalho e da
vida social.
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Bruno Davert recupera como arma de
“guerra”, uma velha pistola nazista,
uma luger guardada pelo seu falecido
pai, que matara alguns inimigos na II
guerra mundial. Bruno diz que, ele
tinha, como se diz no mundo dos
negócios, “talento para esse tipo de
coisa.” O pai falecera de câncer de
pulmão. Provocado por cigarros. Diz
ele: “Morto por caras legais que vivem
vendendo a morte e tremendo de
medo de perder o emprego.”
O espectro do fascismo ronda a ordem burguesa.
Ele apareceu no século XX como a ideologia
política do capitalismo em sua fase critica, sob
determinadas condições da luta de classe (o
avanço político do proletariado no contexto da
Revolução Russa). Caracterizou-se pelo poder
autocrático (e personalista) do Estado político a
serviço dos interesses do grande capital.
Sustentou-se na aguda manipulação das massas
em prol de interesses nacionalistas de caráter
bélico-expansionista. Autocracia burguesa,
manipulação das massas e interesses béliconacionalistas caracterizaram o fascismo
histórico. Mas o fascismo não é apenas uma
ideologia política, mas uma forma de
irracionalismo e metabolismo social que expressa,
em síntese, em situações do cotidiano, o
desprezo agudo pela dignidade humana em
prol de interesses abstratos (a Nação ou o
mercado). Em função destas abstrações mata-se
(e dilacera-se) a vida social.
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A cena da entrevista é deveras preciosa,
contendo inúmeros elementos de reflexão sobre
a realidade intransparente dos processos de
seleção empresarial e os critérios de inserção
profissional no mundo do trabalho. A primeira
cena é uma curiosa gravura de estilo abstrato na
sala de espera da seção de Recursos Humanos.
Parece sugerir traços do mapa europeu
permeado de cédulas de dinheiro (arte tão
abstrata quanto o projeto da União Européia do
capital?). É o mundo do dinheiro que
convulsiona o espaço-tempo da civilização.
Destaca-se também na cena, o estilo
inconformista de Bruno diante da venalidade
pequeno-burguesa que predomina no meio
empresarial.
A entrevista é um momento importante na seleção da
força de trabalho mais qualificada a ser contratada pela
grande empresa capitalista. Ao mesmo tempo que o
capital promove a superfluidade da força de trabalho,
promovendo o downsizing, ele adota procedimentos
sofisticados de intenso controle do trabalho, não apenas
no escritório ou chão de fábrica, mas, por exemplo, no
ato de seleção dos novos empregados. Ora, o aumento
do controle do trabalho vivo e da força de trabalho
empregada, em suas várias instâncias produtivas (e
sócio-reprodutivas) e a superfluidificação da força de
trabalho com a ampliação da superpopulação relativa
– desempregada ou imersa em empregos precários são movimentos intensamente contraditórios do capital em
processo.
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Na sala de espera para a entrevista de
emprego, tendo ao fundo a gravura
abstrata do mapa da União Européia
permeada de cédulas de euro, Bruno
demonstrou ser um homem inconformista.
Embora aparenta ser inconformista, Bruno
dirige seu inconformista para objetivos
particularistas. Eis sua candente contradição
íntima – por um lado, contesta com acidez
o sistema e, ao mesmo tempo, quer ser
parte dele.
Giovanni Alves - UNESP
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A prece de Bruno é uma prece
particularista. Ele apela para seu Deus
em prol de seus interesses particulares.
Cada individualidade de classe possui
seu “Deus” como representação
alienada invertida de sua impotência
radical diante do mundo da
contingência.
Giovanni Alves - UNESP
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A sala de entrevista possui um design construído para
deixar entrevistadora e entrevistado face-to-face num
entorno abstrato – tão abstrato quanto a lógica do
capital. Apenas um notebook numa mesa de reuniões e
nada mais. Note-se o estilo clean do traje da
entrevistadora e sua expressão sóbria, quase sisuda,
em contraste com o sorriso largo que se exige dos
candidatos a emprego. Um detalhe, logo percebido por
Bruno: uma câmera vigia o ambiente da entrevista. Na
verdade, ela focaliza a entrevistadora. Ela diz: “Está
me observando”. No mundo do trabalho abstrato, o
controle é totalizante e totalizador, implicando,
inclusive os gestores do capital.
Giovanni Alves - UNESP
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Na entrevista de Bruno, salienta-se sua alta qualificação.
Como disse a entrevistadora, seu currículo é
impressionante. Entretanto, na empresa onde ele tenta
colocação, as inovações tecnológicas, segundo a
entrevistadora, são limitadas. Nesse caso, na ótica do
capital , qualificação demais é desperdício. A empresa
poderia contratar alguém menos qualificado e com
menor salário – inclusive contratando uma mulher.
Ao ser inquirido se não é
qualificado demais, Bruno
argumenta, na ótica do valor de uso
(e não do valor de troca) que,
“quem sabe fazer mais, pode
fazer menos.” Entretanto, os
gestores empresarias sabem que,
quem sabe fazer mais e ganha
menos, pode ter dificuldades de
motivação e desempenho.
Giovanni Alves - UNESP
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A lógica do capital age no longo prazo –
além de ser, é claro, reiterativa. Os
benefícios empresariais atuam no curto
prazo, buscando o consentimento do
trabalho às injunções da produção de
mercadoria. Aliás, a ordem burguesa busca
construir subjetividades do trabalho que
adotem horizontes imediatistas. Essa
diferença de temporalidades contribuem para
a manipulação do capital.
Ao ser inquirido o que aprendeu com o desemprego, Bruno Davert
faz a seguinte observação: “Que os efeitos a longo prazo destroem os
benefícios a curto prazo.” Ora, Bruno é um homem sagaz e
inteligente, capaz de apreender a lógica da precarização do trabalho e
as armadilhas do consentimento empresarial. Os benefícios a curto
prazo auferidos por ele na fábrica de papeis Kamer, foram destruídos
no decorrer do seu desemprego de longa duração. Entretanto, a
aprendizagem de Bruno não se traduziu numa consciência de classe
necessária sobre a lógica do capital.
Giovanni Alves - UNESP
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O casal Davert, devido a insistência de Marlene, busca um
conselheiro matrimonial. O casal está em crise. O psicólogo diz:
“Meu trabalho não é dar-lhe uma solução, mas ajudá-los a
encontrar suas próprias forças e suas expectativas.” E arremata:
“Recuperar o que tinham”. Na verdade, ao ser inquirida
diretamente por que tinha marcado a sessão, Marlene disse: “Para
poder falar com meu marido”. Ela reclama que, com o desemprego
de longa duração, ele se distanciou e ficou calado. Diz, quase
paranóica: “As vezes, ele me olha como se fosse tudo a minha
culpa”. E desabafa: “O que eu preciso é de um lugar para ser
feliz. Um lugar quer dizer estar com alguém com quem se possa
conversar e dar risadas.” Na verdade, a falta de comunicação do
casal cria uma série de fantasmas que corrói a relação conjugal. A
não-comunicação é uma forma de desefetivação da relação social.
O sociometabólismo da barbárie é
marcada pela impossibilidade da ação
comunicativa. A não-comunicação é o
conteúdo da violência molecular que
dilacera as relações sócio-afetivas. Na
medida em que tempo de vida reduz-se a
tempo de trabalho estranhado – e o
desempregado está imerso no tempo de
trabalho negativo, corrói-se o campo de
desenvolvimento humano, que é o
tempo para si, tempo de vida
comunicativa não mediada por
interesses sistêmicos. As terapias
aparecem como tentativas de
recomposição de individualidades
danificadas pelo sociometabolismo do
capital. Entretanto, elas agem nos efeitos e
não nas causas. Por exemplo, ao dizer
que, “desabafar nos impede de
ficarmos paranóicos”, atua-se na mera
epiderme da relação social dilacerada.
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O terapeuta Quinlan quer saber de Bruno o que ele
sentiu quando foi demitido – raiva? medo?
ressentimento? alivio?. Dessa vez o terapeuta quer
que Bruno desabafe e fale da sua experiência de
demitido. Bruno disse que não sentiu alivio porque
gostava de seu trabalho. Mas depois sentiu raiva,
medo e ressentimento. Quinlan questiona: “Por que?”.
Alterado, Bruno pergunta: “O que eu devia sentir?
Todos os desempregados sentem isso”. E Quinlan
provoca: “Todos? Tem certeza?”.Nesse momento,
Quinlan apresenta sua mensagem conformista e
Bruno reage criticando-a e afirmando que trabalho
não é tudo, mas sem ele não somos nada.
Na linguagem técnica da Química,
conformação significa “Qualquer das formas
espaciais que uma molécula pode assumir,
sem que seja rompida qualquer ligação”. Na
medida em que dilacera laços sociais e
coletivos do trabalho pela reestruturação
produtiva, o capital como modo de controle
estranhado do metabolismo social dissemina
técnicas de conformação, isto é, práticas e
discursos institucionalizados que buscam
conformar o “sujeito desefetivado” com a
nova situação critica. Por exemplo, a
resiliência é uma prática valorativa de
conformação social, que visa evitar o
rompimento da ordem social estranhada. As
terapias contém a ideologia da conformação, na
medida em que buscam formar indivíduos
positivos, alienados de coletividades, capazes
de assumir nova forma pessoal, sem romper
laços funcionais com o organismo burguês.
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Quinlan, o terapeuta, instiga Bruno a ver a
situação de desempregado como uma
oportunidade de vida, isto é, encarar a situação
com uma atitude positiva. “Por que sentir raiva,
medo, mágoas?” - interroga ele. É o discurso da
conformação que está disseminado nas práticas de
manipulação da subjetividade do trabalhador
excluído (manipula-se não apenas o trabalhador
empregado, mas também o trabalhador
desempregado). Eles incentivam, como disse
Bruno, o trabalhador desempregado a ser
criativo e a encarar positivamente o problema.
No mundo do capital, sob o capitalismo global, o
capitalismo do trabalho redundante, busca-se formar
não apenas para o emprego, mas principalmente
para o desemprego estrutural. É o caso da
psicologia da conformação e também da ideologia do
empreendedorismo (dizem: adote uma atitude
positiva e veja o desemprego como uma
oportunidade para montar seu próprio negócio!)
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Provocado por Quinlan, que, que no fundo,
quer ver o cliente desabafar, Bruno
exclama: “Tirando meu trabalho me tiraram
a vida!”. Como trabalhador assalariado,
comprometido com sua carreira profissional,
Bruno tem a percepção clara do valor do
emprego assalariado na estruturação do seu
modo de vida.
Ao mesmo tempo, faz uma observação
perspicaz: “Trabalho não é tudo, mas sem
ele, não somos nada”. É a afirmação de que
vivemos numa sociedade salarial, isto é, uma
sociedade (ainda) organizada
irremediavelmente em torno do ideal de
trabalho assalariado - sem ele, desefetiva-se a
vida social.
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A reestruturação produtiva, ao destruir
coletivos de trabalho organizados,
impulsiona a dessocialização social,
instaurando a barbárie social. Inimizades
e pior, concorrência desenfreada e
particularismo exacerbado – é o quadro da
sociedade salarial negada no interior de
si mesma, pelo movimento do capital.
“Cada um por si e nada de Deus” – é
o lema da barbárie social, uma
sociedade onde tudo é válido. Mais
uma vez, coloca-se uma questão
moral imprescindível. A
concorrência em si e para si –
vinculada à lógica suprema da
acumulação de valor e a constituição
de sujeitos monetários, é a negação
da ética. Dieu est mort!
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Num momento de lucidez, no ápice de sua
deriva pessoal, após matar um de seus
concorrentes, Bruno Davert, ao confessar
virtualmente, faz uma observação interessante,
Diz ele: “Deveríamos nos unir, não brigar por
ninharia.” É o momento de percepção dos
limites irremediáveis do particularismo e o
valor da ação coletiva consciente numa
perspectiva classista, única ação social capaz
de fazer história.
A idéia de coletividade social é uma força
alienada na sociedade de capital, a sociedade do
individualismo. Diante de condições criticas,
impulsiona-se o individuo de classe à deriva
para “saídas” individuais que apenas reiteram
a ordem irracional do capital. Mesmo sujeitos
imersos na contingência de mercado, podem
perceber a insuficiência da ação individual
que apenas reitera o metabolismo social que se
quer combater em seus efeitos danosos. O
capital é um modo de controle que só se
combate por meio de ação (e formas) coletivas
e socializadas, de caráter geral, sob pena das
ações isoladas , parcelizadas e particularistas
o reiterarem. A falta de união é expressão da
fetichização social que fragmenta práticas e
percepção sócio-humanas.
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Bruno Devert, em seu breve momento de lucidez
desesperada, apreende o verdadeiro significado
da barbárie social: a indiferença da classe
dominante pelo destinos da classe dominada.
Ora, a luta de classes é um momento
imprescindível do processo civilizatório . Na
verdade, as classes antagonistas se reconhecem por
meio da luta. Na medida em que não há luta, não
há sequer reconhecimento. É a barbárie social.
Na medida em que houver união e luta, haverá
reconhecimento de direitos – direitos
antagônicos, é claro, que irão se resolver por
meio da luta, isto é, da força como elemento
crucial da política. A invisibilidade dos
oprimidos e dominados é o verdadeiro
significado da barbárie social. Uma das
tarefas importantes da luta política dos
dominados é tornar-se visível e ser reconhecido
na cena histórica como sujeitos de direitos.
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A lógica do particularismo da concorrência é a
lógica do “levar vantagem”. Deve-se ganhar
sempre, sob qualquer condição, utilizando
quaisquer meios possíveis – e o principal:
manter-se no “jogo de mercado”.
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Bruno Devert é um homem pragmático. Ao decidir matar
seus concorrentes, busca assumir o emprego de seus
sonhos: ser gerente de produção da Arcadia. Ele possui
uma racionalidade atroz – não é como o mecânico, que, ao ser
demitido, se mataria diante do chefe; e não é como
Machefer, que mataria os diretores, responsáveis pela sua
demissão. Acionistas e diretores – diz ele, “são meus
inimigos, mas não são problema meu”. Na verdade, ele
nada ganharia com atos “irracionais”. Poderia até se sentir
bem, extravasando sua raiva e ressentimento. Mas seria
sim, uma atitude de particularismo irracional nada prático.
Não resolveria seu problema. O particularismo de Bruno é
o particularismo do capital – possui a racionalidade de
mercado, que visa resultados práticos, perseguindo metas
factíveis. Na verdade, Bruno incorpora a lógica da
concorrência em si e para si.
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A barbárie social decorre de um
movimento de controle sociometabólico
auto-reiterativo. Na medida em que se
constitui como sistema, a barbárie
social e seus procedimentos
sistêmicos se reiteram, voltando
sempre a acontecer. O capital possui
uma temporalidade reiterativa que se
auto-perpetua, dilacerando homens e
mulheres.
A cena final, que não consta no romance de Donald
E. Westlake, mas apenas no filme de Costa-Gavras,
uma mulher assiste em seu laptop um spot
publicitário da Arcadia. O novo gerente de
produção, Bruno Davert, fala das estratégias de
futuro da grande empresa. Diz que a Arcadia
investe no futuro – “o papel será a matéria-prima
do amanhã. Novas estratégias mudarão nossa
tecnologia. “Ele observa que a Arcadia investe para
usar papel reciclado para poupar nossas florestas.
Mas o foco da estranha mulher que assiste a
publicidade da Arcadia é um homem: Bruno Defort.
Ela imprime uma foto ampliada do executivo. Logo
a seguir, dirige-se ao restaurante da empresa para
observá-lo. Fica a pergunta: estaria ela utilizando a
estratégia de Bruno de matar concorrentes para
assumir o posto de trabalho na empresa cobiçada?
O capital desenvolve tecnologias sofisticadas visando o
desenvolvimento ecologicamente correto. Como a Arcadia,
busca “poupar nossas florestas”. Ë o mote do
desenvolvimento sustentável. A questão é que, como
expõe o filme “O corte”, as relações sociais (e humanas)
sob as condições criticas do capital tendem a se degradar.
O capital não se interessa em poupar a humanidade - o
trabalho vivo, degradado pelo desemprego estrutural que
leva homens e mulheres a adotarem estratégias da
barbárie social para se realizarem como “sujeitos
monetários”.
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Pistola Luger P08, utilizada por Bruno Defort em seus assassinatos, foi uma antiga
pistola fabricada na Alemanha. Foi considerada como o maior souvenir da Segunda
Guerra Mundial. Esta pistola foi adotada pelo exército alemão em 1908 (daí o nome P08)
e dois milhões de unidades foram fabricadas entre 1914 e 1918. Como pistola militar, a
Luger não justificava a reputação que granjeou. É elegante, boa de manusear e atira com
precisão, mas sofre de várias limitações para ser considerada uma boa arma militar. Em
primeiro lugar, sua manufatura é bastante dispendiosa. O mecanismo tem muitas peças
miúdas que requerem usinagem e montagem cuidadosas, e as molas têm de ser
fabricadas com certo cuidado. O sistema de culatra articulável é sensível às variações da
potência do cartucho, o que pode emperrar o funcionamento da arma. Lama, poeira,
gelo e neve também provocam enguiços, e uma vez que o mecanismo não é coberto,
nada impede que esses agentes penetrem nele.
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Bruno Davert utiliza várias vezes a cabine de
telefone público no filme “O Corte”. Cada
vez, é assediado por transeuntes inquietos
que querem utilizá-la também. É um homem
acossado pelas circunstâncias da
proletariedade.
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Num certo momento do filme “O Corte”,
enquanto Bruno conversa com seu vizinho,
também desempregado, na porta de entrada
do cinema, onde sua mulher trabalha, num
pano de fundo, um velhinho de cartola
executa, num gesto espontâneo, uma
performance de dança. Talvez seja um
momento de transgressão à barbárie social,
marcada pelo pragmatismo das atitudes
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www.telacritica.org
Versão 1.0
1ª. Edição: 2007
ATENÇÃO:
Por favor, ao reproduzir, preservar os créditos do autor.
Material exclusivamente pedagógico
vendido a preço de custo
sem finalidade lucrativa
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